domingo, 30 de setembro de 2007

Partindo o espelho

Tinha acabado de tomar banho. Não me reconhecia no espelho. Ainda nem tinha me acostumado com a nova identidade. Nome e aposto mais bregas que atraentes e lá estava o cartaz: “Kelly, a safadinha...”. Dançar havia sido fácil. Fio dental e peitos de fora, adolescentes de pau duro, casais liberais, lésbicas histéricas, dinheiro na lateral da calcinha e mãos na bunda. Muitas. Quinze minutos no palco. No camarim, as mulheres se pintando, se drogando, se beijando.

A dona da boate havia marcado meu primeiro programa. Alto executivo. “Paga bem”, disse uma das meninas. E acrescentou: “se gostar de você, vai te procurar sempre. Vê se fode bem!”. Seriam quatrocentos reais por duas horas. Pras meninas, um verdadeiro negócio da china. Pra mim, não fazia a menor diferença. Não estava ali pelo dinheiro. Era a experiência que me fascinava. O íntimo. O visceral. Queria trocar o luxo pela luxúria, minha vida medíocre pelo ambiente hostil. Queria o escatológico, o feio, o sujo.

O meu primeiro cliente lembrava o meu pai. Edipicamente falando, não havia sido necessariamente ruim por isso, mas pela ausência do grotesco. Era tudo limpo demais, chato demais, harmônico demais. Eu não admirava o erudito, não queria uma vida melhor, não buscava o bonito. Já conhecia outros países, já falava outras línguas, já consumia Moet & Chandon, já usava Armani. Mas era chato demais ser uma coisa mais linda e mais cheia de graça num doce balanço a caminho do mar. Ainda não havia encontrado o que desejava.

Não voltei pra boate. Parei num botequim tão limpo quanto a Central do Brasil. Sentei no banco alto junto ao balcão. Os homens que estavam na sinuca não paravam de me despir. Havia mulheres negras, sambando, rebolando, bebendo e rindo alto. Dava tesão vê-las daquele jeito e olhando pra mim com ar de competição. Dava tesão o cheiro de banheiro sujo, cuja fluência da fila era equivalente ao trânsito da Barata Ribeiro. Dava tesão ouvir a música alta, beber a cerveja ordinária, ver as prateleiras imundas.

Escolhi uma mesa à qual estava sentado um homem cujo humor era tão heterodoxo quanto a cor original do seu bigode amarelado e o tamanho de sua barriga. Não havia mais nada a questionar, nem a escolher. Acabava de encontrar o que eu queria. Serviria de inspiração para a masturbação dos restos dos dias daquele porco nojento, que talvez nem acreditasse no dia seguinte. Talvez se separasse de sua esposa gorda, de peitos caídos, mãe de duzentos filhos e voltasse para aquele bar toda vez que se lembrasse da melhor alucinação de sua vida, depois de uma dose de cachaça barata. Talvez esperasse minha ligação. Talvez. Eu já estava satisfeita com as possibilidades. Com um pouco de realidade. Um pouco de sujeira na minha vida limpa. Fria. Vazia. Cheguei em casa e não tomei banho. Mas me reconheci no espelho.

Coisas de Família

Nem All Star, nem salto alto. Descalça. “Veste esse rosa”, a mãe sugeriu. “Não”, ela respondeu. “Já sei! Quer aquele amarelo, né? Mas aquele amarelo é muito decotado, filhinha!”. “Não! Nada!”. Foi a vez do pai, conservador, direita extrema, que resmungou “Daqui a pouco vai estar vestida como aqueles delinqüentes de preto, com uma guitarra na mão...”. Mas ela persistiu “Só quero nada!”. E decidiu não falar mais nada. Não saía da cama. Não comia. Não vestia. Não estudava. Não se masturbava. Não queria. Foi primeiro a voz da tia loura, devota de Ivo Pitanguy – daquelas que tentam recuperar a juventude sonhando com a bunda do professor de ginástica – que ecoou “Ih, é caso médico. Tem que internar...”. Mas a avó, como toda boa avó gorda, que vê beleza nas caras caramelados dos netos rechonchudos de coca-cola e Mac Donald’s interveio “Deixa eu fazer um bom mingau de aveia. E salada de frutas com creme de leite. E bolo de cenoura com calda de chocolate!”. As formigas agradeceram, mas ainda assim, nada... Nenhuma palavra. Um tio disse que só Jesus a salvaria. Mas, no fundo, criam todos que o caso estava mais pra terreiro que pra pagamento de dízimo. O irmão ofereceu um cigarro. Produto jamaicano. Dos bons. A prima vagabunda conseguiu um leve gemido depois de passar sua língua no mamilo, mas não foi adiante por falta de reação – sentia-se gostosa demais por tão pouco. O tio alcoólico ofereceu o velho e bom professor. Doze anos. Com muito gelo. E cada vez que alguém entrava naquele quarto, Thomas Edison dava o ar de sua graça no fim do túnel, mas o fracasso vendia seus méritos sempre na saída. Àquela altura, já não era por ela. Na verdade, nunca havia sido. Nem pelo caso. Nem pela vida. Era por cada um. Por si mesmo. Quem alcançaria o grande feito. Quem teria os créditos. Quem seria laureado. Agraciado. Medalha Olímpica. Pódio. Redenção. Já perto de desistirem, decidiram que o caso era acaso. Não. Obra da transcendência. Sim. Era mais fácil desse jeito. Era melhor culpar o invisível que admitir o próprio fracasso. Entrou um padre com água-benta. Um pastor com uma Bíblia. Um pai-de-santo com farofa, cachaça e frango assado. Mas não houve Buda nem Gandhi nem Jeová que desse jeito. A fome já começava a apertar. “Vamos pedir uma pizza!”. “Mussarela!”. “Calabresa!”. “Meio a meio!”. “Fechado!”. “Um chopinho também é bem vindo...”. Já ia começar a partida de futebol. Logo depois do último capítulo da novela. Foi quando a menina se levantou, vestiu qualquer coisa e saiu do quarto. Todos se entreolharam boquiabertos. Não por surpresa, mas por decepção. Como teria ousado não esperar as ordens? Uma verdadeira atitude transgressora! Mas a egrégora da sala não permitia outra coisa além do silêncio. Das derrotas íntimas. Das certezas falidas. Houve um acordo tácito. Ninguém comentaria sobre o caso... “Pega mais um pedaço!”. “Desce mais um chopp!”. As atenções agora estariam voltadas, num misto de identificação e voyeurismo vazio, para a qüinquagésima edição dos grandes irmãos instantâneos...

sábado, 22 de setembro de 2007

Si tu savais comme j'ai envie d'un peu de silence...

Eu não gosto do sol. Não gosto da chuva. Eu gosto do vento. Ele não aquece. Não lava. O vento varre... Traz e leva a poeira. Arbitrariamente. Indomável. Un parole encore. Au vent...