domingo, 30 de setembro de 2007

Coisas de Família

Nem All Star, nem salto alto. Descalça. “Veste esse rosa”, a mãe sugeriu. “Não”, ela respondeu. “Já sei! Quer aquele amarelo, né? Mas aquele amarelo é muito decotado, filhinha!”. “Não! Nada!”. Foi a vez do pai, conservador, direita extrema, que resmungou “Daqui a pouco vai estar vestida como aqueles delinqüentes de preto, com uma guitarra na mão...”. Mas ela persistiu “Só quero nada!”. E decidiu não falar mais nada. Não saía da cama. Não comia. Não vestia. Não estudava. Não se masturbava. Não queria. Foi primeiro a voz da tia loura, devota de Ivo Pitanguy – daquelas que tentam recuperar a juventude sonhando com a bunda do professor de ginástica – que ecoou “Ih, é caso médico. Tem que internar...”. Mas a avó, como toda boa avó gorda, que vê beleza nas caras caramelados dos netos rechonchudos de coca-cola e Mac Donald’s interveio “Deixa eu fazer um bom mingau de aveia. E salada de frutas com creme de leite. E bolo de cenoura com calda de chocolate!”. As formigas agradeceram, mas ainda assim, nada... Nenhuma palavra. Um tio disse que só Jesus a salvaria. Mas, no fundo, criam todos que o caso estava mais pra terreiro que pra pagamento de dízimo. O irmão ofereceu um cigarro. Produto jamaicano. Dos bons. A prima vagabunda conseguiu um leve gemido depois de passar sua língua no mamilo, mas não foi adiante por falta de reação – sentia-se gostosa demais por tão pouco. O tio alcoólico ofereceu o velho e bom professor. Doze anos. Com muito gelo. E cada vez que alguém entrava naquele quarto, Thomas Edison dava o ar de sua graça no fim do túnel, mas o fracasso vendia seus méritos sempre na saída. Àquela altura, já não era por ela. Na verdade, nunca havia sido. Nem pelo caso. Nem pela vida. Era por cada um. Por si mesmo. Quem alcançaria o grande feito. Quem teria os créditos. Quem seria laureado. Agraciado. Medalha Olímpica. Pódio. Redenção. Já perto de desistirem, decidiram que o caso era acaso. Não. Obra da transcendência. Sim. Era mais fácil desse jeito. Era melhor culpar o invisível que admitir o próprio fracasso. Entrou um padre com água-benta. Um pastor com uma Bíblia. Um pai-de-santo com farofa, cachaça e frango assado. Mas não houve Buda nem Gandhi nem Jeová que desse jeito. A fome já começava a apertar. “Vamos pedir uma pizza!”. “Mussarela!”. “Calabresa!”. “Meio a meio!”. “Fechado!”. “Um chopinho também é bem vindo...”. Já ia começar a partida de futebol. Logo depois do último capítulo da novela. Foi quando a menina se levantou, vestiu qualquer coisa e saiu do quarto. Todos se entreolharam boquiabertos. Não por surpresa, mas por decepção. Como teria ousado não esperar as ordens? Uma verdadeira atitude transgressora! Mas a egrégora da sala não permitia outra coisa além do silêncio. Das derrotas íntimas. Das certezas falidas. Houve um acordo tácito. Ninguém comentaria sobre o caso... “Pega mais um pedaço!”. “Desce mais um chopp!”. As atenções agora estariam voltadas, num misto de identificação e voyeurismo vazio, para a qüinquagésima edição dos grandes irmãos instantâneos...

Um comentário:

Mariana disse...

como já dito - por óbvio, até - muito bom!
;)

já estou respondendo seu email...
linda!

beijo!